No Café da Dona Alzira

(qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência)

Naquela manhã, decidi sair. Saí da cama com todas as energias vindas nem sei de onde. Cantarolava enquanto tomava duche e vestia um fato de treino novo que queria experimentar. Ficava-me bem! Apanhei o cabelo, peguei nas chaves e saí. Estava frio na rua, o nevoeiro quase nos impedia de ver o que estava do outro lado do alcatrão e o vento cortante quase me despenteava o que levou longos dois minutos a pentear.
Apetecia-me um café e um mil-folhas. Era domingo e, por isso, a dieta estava esquecida. Também por ser domingo, havia apenas um sítio com bolos fresquinhos: o café da D. Alzira - a apenas 3 ou 4 metros da minha casa, numa esquina movimentada ficava o café da D. Alzira, sempre com alguém a conversar na esplanada, faça sol ou faça chuva, sempre com crianças por ali a correr e a pedir um rebuçado ou um bombom. E agora mais uma pessoa que se sentara numa pequena mesa redonda a desfrutar de um café e de um mil-folhas como se não comesse há 2 ou 3 dias: eu.
A D. Alzira é uma senhora já de idade com filhos criados e netos por criar. A todos os que entram no seu estabelecimento cuida como se de família se tratasse.
«Há tanto tempo que por cá não te via! Como vão as coisas no emprego? Está tudo a endireitar-se?»
«Está tudo melhor, obrigada.»
«E o que vai ser hoje, filha? Os pastéis de nata estão a sair do forno.»
«Mas eu hoje prefiro um mil-folhas, tia Alzira. E um café também, por favor.»
Naquele momento, uma menina, muito séria, largou repentinamente os seus lápis coloridos, aproximou-se de mim e, na seriedade dos seus 8 anos, disse-me:
«Tia Alzira? Como assim tia? Ela é minha tia! Não tua!»
Tentando não rir, adotei uma postura politicamente correta e pedi desculpa. A partir daí tive sempre o cuidado de dizer D. Alzira (dizer e escrever, não vá a menina encontrar a minha escrita e ofender-se também por aqui).
E lá estava eu, naquela pequena mesa redonda, sendo frequentemente olhada pela menina que tinha, há momentos, ofendido. Devorava o meu mil-folhas, empurrava-o com o café negro a escaldar e lia as notícias do futebol da semana. Algumas mesas distanciadas comentava-se política e futebol. De vez em quando, entrava alguém que nos cumprimentava a todos com um "Bom dia!", tomava um café e saia: "Resto de bom dia vizinhança!". Na nossa aldeia é assim e é assustador quando saímos daqui. Dizem que quem cá entra acaba sempre por ficar, mesmo que tente sair. Somos todos como uma grande família. 
E enquanto estavamos concentrados naquela rotina de domingo "à da D. Alzira", entra pelo estabelecimento um corpo desconhecido. Não diz bom dia. Não se dirige ao balcão. Em vez disso, ocupa uma mesa que estava vazia, distante das já ocupadas. Todos se silenciaram e deixou de se ouvir falar no Benfica ou no governo.
A D. Alzira deixou o seu posto atrás do balcão e encaminhou-se até ao recém-chegado. 
«Bom dia, seja bem-vindo. O que vai desejar? Um cafézinho?»
O homem tirara o pesado casaco preto que carregava ao entrar. Agora nem parecia ouvir a pobre senhora. E foi apenas quando o tio António (e este posso seguramente chamar de "tio") se preparou para defendê-la que o homem falou.
«Bati-lhe. Ela desafiou-me e eu bati-lhe.»
Estávamos todos perdidos, não entendíamos o seu discurso, mas, de alguma forma, aquele desconhecido tinha captado a nossa atenção. E então ele recomeçou:
«O amor era evidente quando a conheci. Ao olhá-la, os meus olhos curvavam-se e brilhavam. Olhava-a frequentemente, gostava do que me fazia sentir. Sabia que ela me amava também. Quando passava por ela, sentia que curvava ligeiramente o corpo para se fazer notar. Usava um perfume intenso e convidativo, nalguns dias exagerava propositadamente. Como eu adorava aquele perfume...
Comecei a namorá-la à janela de casa de seus pais. A menos de dois metros de nós estava a mãe dela, muitas vezes distraída com os seus dedais. E era nesses momentos de distração que me  arrancava um beijo com o desejo e o fulgor dos nossos 18 anos. Era nesses momentos que quase saltava a janela para se agarrar ao meu peito. Mas o dedal cai e a mãe lá nos lançava um olhar que punha controlo em tudo - que punha controlo nela.
Éramos jovens e estavamos perdidamente apaixonados. Quantos de vós não estão também?»
Naquele momento fitou-nos. Através da sua barba branca e mal arranjada vi o seu rosto triste. Com saudade, talvez. Olhava-nos seriamente sem esperar uma resposta. Nós não lha daríamos de qualquer forma, éramos incapazes de falar.
«Com o tempo, quando estava bem-disposta, a mãe dela deixava-a sair de casa e olhava-nos fixamente enquanto nos olhávamos ou dávamos as mãos. Nada de amassos ou apalpões como se faz por aí agora. Mas desenganem-se se acham que não queríamos, que não desejávamos. O olhar dela denunciava-a e eu, enquanto homem, facilmente era também denunciado. 
Foi o desejo que nos matou.
Há 2 anos, 3 meses e 21 dias que a visitava quase diariamente. A mãe dela começava a gostar de mim, parecia-me. Sem dizer nada aos meus pais, ou à minha amada, encaminhei-me, certa noite, a casa dela. Fui mal recebido pela mãe por serem horas indecentes, no entanto, prossegui e perguntei pelo homem da casa. As minhas mãos suavam e as pernas tremiam. O ar do homem que estava agora a sós comigo na sala era ainda mais intimidante do que eu imaginara. Temia-o. 
Pedi a mão dela em casamento com o ar mais digno e confiante que encontrei no meu ser. Não! Gritou-me: Não! E quando os meus olhos se encheram de lágrimas ele disse-me apenas que os homens não choram nem se dignam a excitar (sim, usou mesmo esta palavra) jovens solteiras inocentes.
Sofri durante meses a fio até receber uma carta dela que me prometia ser minha para sempre se me encontrasse com ela naquela madrugada. 
Não tive dúvidas. Não disse nada aos meus pais ou à minha irmã. Não levei roupa. Peguei na minha pistola e em algum dinheiro. Fui a casa dela e vi-a saltar a janela que costumava ser a cúmplice do nosso discreto romance.
Ao chegar perto de mim, estendi-lhe a mão. Mas ela recusou-a e saltou para cima de mim. Agarrou-se ao meu pescoço com lágrimas nos olhos, beijou-me levemente os lábios e sussurrou-me que me amava. Foi a única vez que o fez.
Partimos em rumo a não sei onde e prometemos não comunicar com os nossos familiares novamente, prometemos que seria o amor acima de tudo. Foi difícil para ambos e limpei-lhe as lágrimas diversas vezes.
Não sei como, mas sobrevivemos. Conseguimos juntar dinheiro e depois de algumas noites geladas encontramos onde pudéssemos dormir. Com o passar do tempo, construímos um lar e uma família. Éramos felizes na maioria dos dias, a vida corria-nos bem. Tivemos dois filhos lindos, eram a luz dos nossos olhos. Foi diferente do que esperava, cada um dos quatro tinha o seu lugar definido. Amavamo-nos todos sem que nos preferíssemos uns aos outros. Ela nunca preferiu os nossos filhos. Amava-os, é certo. Mas também me amava a mim. E demonstrava-o. Havia dias em que me levava torradas à cama, havia dias que enchia a banheira de espuma, em que se punha bonita enquanto me esperava e me seduzia durante horas, até que caíssemos cansados na cama. 
Noutros dias, era eu quem a surpreendia. Comprava-lhe um colar no caminho para casa, pedia-a em namoro uma e outra vez com ramos de flores... Eu também a fazia feliz.
Os nossos amigos diziam que, mesmo após dois e três anos juntos, parecíamos recém-namorados. 
Mas o ano passado tudo mudou. Ela voltou a engravidar, mas não queria a criança. Começou a beber e a descarregar as frustrações em mim e nas crianças. Eu fui despedido e voltei a beber. Houve dias em que as crianças eram as únicas sóbrias em casa. Tinham de comer, lavar-se e deitar-se sozinhas. Nesses dias as discussões eram bárbaras.
Ao chegarmos a casa, o primeiro esperava sentado na cama, a fitar a porta, pela chegada do outro. Quando estávamos os dois no quarto, despíamos as roupas e gritávamos. Lembro-me de lhe dizer que não merecia os sacrifícios que havia feito por ela, que deveria ter ficado no berço de ouro que os meus pais haviam construído para mim e para a minha irmã. Ela disse-me que nunca devia ter saltado aquela janela, que os seus pais estavam certos e que ... e eu bati-lhe. Dei uma chapada na sua face corada pela raiva e vi o seu corpo nu cair sobre a cama. Nesse momento, ela olhou-me como costumava olhar-me pela janela, então nós fizemos amor e, na manhã seguinte ela não acordou.
Perdi a minha mulher, o meu terceiro filho e a minha família.
Perdi tudo!»
Terminou. O café estava em silêncio à medida que as lágrimas caiam dos olhos da tia dona Alzira. 
«É um café, por favor.»
Foram as suas últimas palavras antes de sair do café e nunca mais ninguém o ver pela vila. 

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