Algures em 2050

(qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência)

Uma destas manhãs estava no supermercado onde costumo trabalhar. Tudo parecia um dia normal. Até que chegou à minha caixa uma senhora. Podia ser uma senhora como tantas outras. Mas algo me despertou logo a atenção: as suas compras, mais de meia dúzia de pequenos sacos de plástico com três pêssegos em cada. 
Acho que tentei sem sucesso esconder a minha confusão ao deparar-me com aquela forma singular de comprar pêssegos. E talvez por isso a senhora começou a falar. 
«Não vou comer esses pêssegos todos.»
Eu sorri.
«Talvez apodreçam dentro dos sacos.»
Fiquei confusa. Mas sorri.
Quando se trabalha com pessoas, é importante sorrir.
«Mas ele gostava dos pêssegos assim.»
Quando se trabalha com pessoas, é importante não meter o nariz onde ele não é chamado.
Pois foi o que eu fiz.
«O seu marido?»
«Não. O amor da minha vida.»
Naquele momento imaginei diversas justificações para aquela resposta. Não quis acreditar em nenhuma. Não quis pensar mais naquilo. Mas, para minha surpresa, ela esperou até à minha hora de almoço com todos aqueles sacos de pêssegos nas mãos. Ia a sair do supermercado, quase sem dar por ela, quando se chegou perto de mim e me contou a sua história.
«Conheci-o no facebook. Não me julgue. Conheci-o como se conhece qualquer outra pessoa. Éramos jovens. Eu tinha 14 ou 15 anos. Procurávamos algo, todos os jovens procuram, não é verdade? Eu não procurava amor. Pelo menos acho que não procurava.
Conheci-o porque ele era amigo dos meus amigos. Adicionei-o. E contrariamente a muitos outros, ele mandou-me mensagem. Chamei-o de amigo. Cheguei mesmo a chamá-lo de irmão. Sempre nos demos bem porque os sentimentos eram mútuos, todos eles.
Mas como a maioria dos meus amigos virtuais, chegou o dia em que a conversa deixou de ter assunto. De repente passava um dia em que não falávamos. Depois dois. E de repente só falávamos no Natal e aniversários.
Ao início era apenas de um amigo virtual que se tratava. Eu não sentia falta dele, assim como não sentia falta da maioria dos meus amigos virtuais. Tratava-se sempre de um amor intenso, uma amizade que parece estar sempre lá para nós. Mas que se revela efémera.
É uma história tipicamente adolescente, não é?
Mas como vê, eu cresci. E como pode ver pela minha aliança, sou casada. E por isso deve estar a perguntar-se como me digno a chamar a outra pessoa amor da minha vida.
Pode perguntar. Pergunte!»
Mantive um silêncio que se situava entre saber que não era altura para falar e pressa para ir almoçar e voltar ao trabalho.
Mas sem esperar qualquer resposta, ela continuou.
«Comecei a namorar cedo. Tive vários namorados até. Mas a partir dos 20 esses namoros vão se tornando mais sérios. É assim com toda a gente, não é? Bem, foi assim comigo. E fui tendo alguns namoros sérios. Aos 28 casei-me. Por amor? Talvez. O meu marido é uma pessoa incrível e está disposto a qualquer coisa por mim, assim como estou disposta a seja o que for preciso por ele.
No entanto, no dia do meu casamento apercebi-me de algo. Estava a acabar de arranjar o véu. Todo o look estava montado e lembrei-me do dia em que entrei no autocarro, passei por ele e não o cumprimentei. Não o fiz porque não sabia se era ele. Só tínhamos tido contacto no facebook e já tinham passado alguns anos. A dúvida resistiu. Seria ele? Nem perguntei.
Poderia ter sido a oportunidade da minha vida. Podia simplesmente ter sido eu a dizer olá desta vez. Mas não disse.
E, por isso, continuei a ter namorados. E, por isso, casei. Mas nunca senti com ninguém aquilo que senti com ele. Na relação tem de haver uma intimidade que surge sem saber como, uma cumplicidade que vem do nada. Tem de haver uma amizade das mais puras e verdadeiras, uma aliança, uma irmandade quase. Tem de haver algo que só encontrei nele. Mas naquele dia não o reconheci. Ele passou ao meu lado com um saco de plástico com três pêssegos, entrou à minha frente no autocarro e nunca mais o vi.
Agora, chame-me louca se achar adequado, mas hei de continuar a comprar sacos de pêssegos enquanto a minha memória resistir, na esperança que um dia o encontre e lhe possa oferecer um.»
Ia abrir a boca para dizer alguma coisa, não sabia o quê. Nem tive de pensar nisso porque nem tive tempo de piscar os olhos antes que a senhora me virasse as costas e caminhasse em direção oposta.
Fui para casa. Servi o almoço no prato e mexi a comida com o garfo até que aquela curta hora passou.
Voltei ao supermercado e ocupei o lugar na caixa que esperava por mim. Não tinha almoçado, mas respirei fundo, sorri e preparei-me pois mais histórias assim poderiam vir no próximo carrinho de compras.

Desenho: Maria Delgado (obrigada!)

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